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Por Jorge Roberto Fragoso Lins
A compreensão das crianças de
que os objetos são independentes e que possuem características e localizações
próprias no espaço é extremamente importante para uma visão ordenada da
realidade física. Esse entendimento ajuda a fundar a base para a consciência
que as crianças têm de que elas mesmas existem separadamente dos objetos e,
sobretudo, das outras pessoas. Um ponto fundamental da compreensão da criança
em relação aos objetos é o conceito de permanência, é a percepção de que um
objeto ou mesmo uma pessoa continuará existindo mesmo que esta esteja fora do
campo de visão da criança. O desenvolvimento desse conceito é visto através do
jogo de se esconder que muitas mães, pais ou cuidadoras fazem, desaparecendo e
reaparecendo para a criança. O reaparecimento da pessoa é recebido pela criança
com gestos e tons de voz que esbanjam alegria e prazer. A alegria que o bebê
sente com relação à brincadeira representa uma estimulação sensorial que é
aumentada pelo fascínio que ele tem por rostos, vozes e em especial pelos tons
mais agudos que é costumeiro os adultos usarem com eles.
A brincadeira contribuirá
para vários propósitos importantes para a vida da criança, e um dos, segundo
Freud, está em dominar a ansiedade quando a mãe estiver ausente. Certa vez, nos
esclarece Freud, sua filha precisou se ausentar de casa por algum tempo e pediu
que ele cuidasse do neto pequeno. Freud observou, então, que o menino passou a
brincar jogando um carretel que estava preso a um fio, de dentro do berço para
fora, de modo que o mesmo desaparecia sob a cama. O neto repetiu várias vezes
esse jogo e não chorou porque sua mãe estava ausente. Quando jogava o carretel
para fora do berço Freud observou que o neto produzia um som que se assemelhava
a este: ó ... ó... ó... Já, quando puxava o fio e tinha o carretel em seu poder
à criança dizia: dá...dá...dá com uma expressão de felicidade no rosto. A
compreensão de Freud para o fato fez com que ele pensasse algo que tivesse
semelhança com a brincadeira de desaparecer e reaparecer do adulto, algo que
tivesse o mesmo sentido do “sumiu e achou”, denominando, assim, a brincadeira que
seu neto Ernst se ocupava de fort-da,
relatando posteriormente sua experiência com o neto em seu livro Além do
Princípio do Prazer (1920). Esta experiência serviu para que Freud elaborasse
seu texto “Repetir, Recordar e Elaborar”, onde ele trata das compulsões. “Fort”
teria um significado parecido a “fora” ou “ir embora” e “Da” algo semelhante a “aqui”.
O jogo do carretel mostra claramente a noção de
objeto independente, de localização e de espaço do qual nos referimos no início
de nosso texto, como também a distinção essencial
entre o “Eu” e o “Não-Eu” que fundamenta o mecanismo subjetivo para o discurso
como sujeito da enunciação, a saber, para a linguagem. De forma ainda
rudimentar, Ernst buscou com o lançar do carretel para fora do berço e depois
trazendo para si, emitindo para cada comportamento realizado um determinado som
(fort-da), atribuir um sentido para o
que fazia e, assim, controlar sua ansiedade por sua mãe não está presente,
segundo Freud. Nesse sentido, o que é perfeitamente observado é a morte da
coisa, também conhecida como objeto perdido ou objeto a, e o emergir do simbólico
e do desejar. De certa forma, o bebê está seguindo o mesmo caminho que sua mãe
fez ao nomear suas necessidades. Dito de outra maneira, Ernst ou qualquer outra
criança que não possui maiores problemas psíquicos e cognitivos só consegue ter
a condição que teve Ernst de fazer uma representação do objeto carretel com a
presença e ausência de sua mãe se antes teve o privilégio de ter uma mãe
satisfatoriamente boa que se inscreveu nele como significante primordial, ou
seja, como o Outro primordial que o instituiu no simbólico.
Quando tomamos como referência o conceito de Freud
do fort-da, consequentemente, o associamos
ao conceito de permanência do qual mencionamos no começo de nosso trabalho.
Dito de outra forma, mesmo sem a presença
física da mãe, Ernst de sua forma percebia que aquele objeto continuava existindo.
Nesse jogo de lançar o carretel e depois trazê-lo de volta quando desejasse não
só trazia a questão da separação de sua mãe, mas possibilitava a condição de associar
o objeto carretel ao objeto mãe, e com isso a condição de empoderamento do
objeto que é representado pelo carretel.
Na medida em que o bebê vai desenvolvendo sua
competência para prever acontecimentos futuros, a brincadeira do desaparecer e
reaparecer vai tomando novas dimensões que irão enriquecer a experiência. Por
volta dos três aos cinco meses de idade, o bebê terá um ganho em sua percepção,
ou seja, o da expectativa do que irá acontecer depois que o adulto desapareceu
de seu alcance visual. Assim que o mesmo reaparecer o bebê se deixará levar por
boas gargalhadas. O bebê entre cinco e oito meses ao ouvir a voz do adulto irá
demonstrar uma antecipação ao olhar e sorrir para a direção que ouviu a voz. Com
um ano, o bebê já se mostra ativo para as brincadeiras, envolvendo inteiramente
o adulto e podendo ficar insistente até conseguir o seu intento de brincar com
ele.
As brincadeiras infantis possuem um cunho psíquico e
comportamental extremamente importante tanto para as crianças quanto para os estudos
dos profissionais de psicologia. Sustentadas pelas mais diversas fantasias que
estão ocultas no indivíduo, elas não estão alheias a sua realidade. A temática é
revestida de tamanha importância que não custa lembrar que Freud fundou a
psicanálise e desenvolveu seus primeiros trabalhos ao estudar e analisar as
fantasias das histéricas.
Freud entendia que a criança ao brincar tem prazer na
aparente onipotência que passa a possuir ao manipular os objetos cotidianos que
para ela seriam símbolos imaginários, como o fort-da, onde seria evocada a
presença da mãe que estaria presente numa análise infantil. No entanto, não se aprofundou
na temática tanto como Melanie Klein que verdadeiramente trouxe a brincadeira
para o setting analítico. Klein reconheceu uma semelhança entre uma atividade
lúdica infantil com o sonho de um adulto, e as verbalizações da criança ao
brincar a uma associação livre clássica. Por sua vez, Winnicott seguiu vários
dos preceitos de Klein e situou o brincar como um objeto de estudo, estabelecendo
o brincar do analista, e o grande valor que essa atividade possui em si, instituída
como uma atividade infantil que também faz parte do universo dos adultos. Em
outras palavras, o brincar para Winnicott, é algo além de imaginar e
desejar, brincar é o fazer.
Winnicott entendia o brincar tanto para as crianças como para
os adultos como um campo transitório, intermediário entre o mundo psíquico e o mundo socialmente construído. Este campo
seria constituído das duas realidades do sujeito, ou seja, pela realidade
interna e externa. Esta seria a forma como Winnicott compreendia o brincar.
A
área intermediária se constituiria com o desenvolvimento da capacidade do bebê de perceber e aceitar a
realidade social, ou seja, a realidade externa. Ela teria um aspecto
transitório que se inicia com a ilusão do bebê que se percebe o todo poderoso
que possui o poder sobre o seu redor. Até ai se assemelha ao que Freud
mencionou com a onipotência que passa a possuir a criança ao manipular os
objetos do cotidiano que para ela seriam símbolos imaginários. No entanto, o
pensar de Winnicott vai se afastar de qualquer semelhança do pensar de Freud,
quando ele afirma que a criança passa pela desilusão quanto à sua própria
onipotência, desconstruíndo o que até então tinha como realidade e começa a
aceitar a realidade que o social construiu para ela. Quando o indivíduo chega à
vida adulta esse campo intermediário será perfeitamente percebido em sua
manifestação artistica, na religião e na cultural de uma maneira mais ampla. O
que deve ficar claro é que tanto a fantasia como a própria ilusão permanecerão
para o resto da vida do sujeito, afinal de contas, ninguém vive sem um mínimo
de fantasia.
* Jorge Roberto Fragoso Lins é sociólogo, pós-graduado em
intervenções clínicas em psicanálise e graduando do 8º período de psicologia.
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